Matheus Reis: a história do rapaz que não parava nos semáforos de São Paulo
A casa é pequena, modesta. Cheira sempre a bolo de fubá e aos mimos da mãe.
Da cozinha escuta-se o ranger da porta da entrada e as passadas rápidas de Matheus Reis. A corrida surda transforma-se em abraço e de abraço em desabafo.
Mamãe, eu vou jogar no São Paulo!
A dona Luciana banha-se em lágrimas e o senhor Paulo Sérgio chega esbaforido.
Você vai para onde, filho?
São Paulo, papai. São Paulo! Eles escolheram-me, querem que eu vá para lá.
Surpreendente. Matheus tem 15 anos, a vida não excede os limites da pequena São João da Boavista e o futebol a sério não passa de um pensamento distante, em jeito de suspiro.
Numa tarde de 2010, um encontro com tanto de ocasional como de misterioso, vira a vida da família Reis Lima de pantanas. Imaginem a cena, filmem-na como se a lente de Fellini fosse vossa, saboreiem o zoom out e atentem nos pormenores.
Tupa Gomes, o descobridor de Matheus Reis, figura maior do Sporting e da Liga 2021/22 nas últimas semanas, levanta o pano e leva o zerozero pelas primeiras cenas da vida do defesa brasileiro.
«Eu já descobri centenas de crianças para o futebol, mas o Matheus tem a história mais linda. Casemiro, Rodrigo Caio, Óscar, Breno, William Arão, todos passaram pelas minhas mãos. Nenhum tem uma história tão emocionante como a do Matheus», avisa o antigo treinador do São Paulo, o homem que em 2015 pega no carro e percorre 300 quilómetros até ao interior, mesmo interior, do estado.
A cena determinante começa aqui. Luzes, câmara, ação.
«Fui observar um torneio de equipas jovens a São João da Boavista. O torneio acabou e eu saí de lá desolado. Lembro-me, inclusivamente, de ligar ao meu chefe e de lhe dizer algo assim: ‘Aqui está muito fraco, não vale a pena ficar com nenhum moleque’. Eu vi 80 por cento dos jogos desse torneio e ninguém me agradou.»
Falta mais qualquer coisa. Um volte-face, um plot twist à Fincher ou Shyamalan.
E eis que surge um motociclista na paisagem. «Decidi ir-me embora, entrei no carro e, quando ia a arrancar, aparece-me um rapaz de moto», recorda o professor Tupa Gomes, garimpeiro de pérolas, pepitas de ouro e de tudo o que é material precioso nos verdes anos do futebol brasileiro.
«Assustei-me, pensei que era um assalto. O rapaz tira o capacete, vira-se para mim e diz assim: ‘O senhor viu a equipa do São João [da Boavista] a jogar? Não viu o menino Matheus [Reis]? Eu juro ao senhor que é o melhor atleta da região. Por favor, leve-o para o São Paulo’. Bem, meio assustado, eu lá disse ao rapaz que ia registar o nome, ele arrancou e até hoje não sei quem ele era.»
«Sabíamos que o Matheus ‘não era o cara’»
Identidade misteriosa. Quem teria sido o rapaz da moto? Não há esclarecimento para esta cena. Fica tudo em aberto. Nem Tupa Gomes é capaz de se aquietar, até hoje.
A verdade é que o encontro muda radicalmente a vida desportiva de Matheus Reis.
«Conduzi até São Paulo a matutar nessa conversa, expliquei tudo o que tinha vivido ao meu diretor e ficámos curiosos. Quem seria esse Matheus Reis? Bem, claro que voltei a São João da Boavista, procurei a família do Matheus e convidei o rapaz a ir treinar ao São Paulo, mesmo sem nunca o ter visto jogar. Tivemos sorte, acertámos em cheio.»
Quem vê Matheus Reis de leão ao peito não imagina o que está para trás. A família dedicada ao trabalho na oficina de automóveis, a escola negligenciada por culpa da obsessão pela bola, os anos de espera até à chegada ao gigante paulista.
Tupa Gomes faz de tutor e entrega Matheus no clube. O esquerdino é «muito magrinho, escanzelado», embora «tecnicamente forte». A analogia escolhida leva-nos para campos de batalhas demasiado reais.
«Eu puxava o Matheus pelo braço e dizia-lhe que se entrasse numa guerra morria logo. Só queria disparar para todo o lado. Melhorou bastante esse aspeto tático a partir dos 16 anos, porque era inteligente e sabia ouvir.»
Agora «imprescindível» para Ruben Amorim, Matheus faz no São Paulo «o caminho das pedras». Acertar aqui, encaixar ali, encurtar de um lado e esticar do outro. Um verdadeiro trabalho de relojoeiro até tudo estar nos conformes, o que ocorre por volta de 2014, ano em que começa a ser chamado aos treinos do plantel profissional.
«Não vou mentir. Demorou. Eu conheci-o como médio-ofensivo, posição-dez. Recuei-o para a posição-oito e mais tarde tornou-se lateral esquerdo. Era um dos muitos bons jogadores que tínhamos, mas sabíamos que ele ‘não era o cara’», confidencia Tupa Gomes.
«Havia vários atletas superiores, mas o Matheus ultrapassou todos porque era mais equilibrado. Em 2015, por exemplo, renovou o contrato profissional até 2019. Ele aí já tinha provado uma maturidade incomum para a idade.»
Tupa Gomes não cessa a garimpa. Agora trabalha para o Flamengo, a partir de um centro de treinos no Paraná. Matheus Reis, insiste, continua a ser um dos seus principais achados. O sucesso do menino de São João da Boavista, no Sporting, acaba por comovê-lo.
«É para isso que trabalho. Melhorar vidas. O pai e a mãe do Matheus sempre foram pessoas educadas, corretas. E o Matheus era também assim. Muito respeitador. Posso dizer que em seis/sete anos na formação do São Paulo, nunca tive a necessidade de ligar aos pais dele a fazer queixa de algum comportamento menos bom. Que sejas feliz, meu querido.»
BAHIA: «O Matheus tinha de aperfeiçoar o cruzamento»
O Paraná fica para trás, o zerozero voa 1900 quilómetros para norte e estamos na Bahia. O telefone toca e do outro lado atende Guto Ferreira.
É ele que em 2017 acolhe e treina Matheus Reis, por empréstimo do São Paulo, na última paragem brasileira antes da chegada a Portugal.
«Trouxemos o Matheus para rivalizar com o [Pablo] Armero no lado esquerdo da defesa. Foi um jogador que me surpreendeu pela entrega, pelo foco na profissão. Era muito forte na transição ofensiva, embora necessitasse de algum aperfeiçoamento no último passe e no cruzamento», confidencia o homem que entre 2003 e 2005 treina o Penafiel e a Naval 1º Maio, em Portugal.
«O Matheus era, acima de tudo, um trabalhador exemplar. Acabou por aproveitar uma lesão do Armero para fazer 60 por cento das partidas. Numa fase posterior alternou na posição com o Juninho Capixaba [agora no Fortaleza].»
No São Paulo, Matheus faz 32 anos na equipa principal. Até sair e procurar a felicidade noutros lados. Na mala leva o pé esquerdo «muito afinado» e o «sorriso inabalável».
«Era um menino ótimo para o ambiente de grupo. Diria que fez um ano muito razoável connosco. Tenho um carinho especial pelo Matheus porque sempre aceitou as minhas opções», recorda Guto Ferreira, atento ao que o antigo pupilo faz em Alvalade.
«Tenho visto alguns jogos do Sporting. Gosto muito de vê-lo como terceiro homem no centro da defesa. Ele tem esse perfil que lhe permite arrancar e ganhar metros com facilidade. Vejo-o mais maduro, equilibrado, fisicamente mais apto.»
Guto Ferreira tem mais histórias na ponta da língua. O «produto incompleto» enviado pelo São Paulo fica no final dos treinos a aperfeiçoar «o cruzamento e o remate», e após isso há sempre uns minutos para dois dedos de conversa.
«Ele era caladinho, eu tinha de puxar um pouquinho pelo Matheus. Uma história boa? Uma coisa que ele me dizia muitas vezes, quando eu lhe perguntava se ele andava bem, era isto: ‘Professor, aqui é muito tranquilo. Eu até consigo parar nos semáforos à noite. Em São Paulo não dava, era bem perigoso’.»
«O Rúben Lima era um relógio suíço e o Matheus não jogava»
Quando abre uma vaga no lado esquerdo da defesa do Moreirense, em janeiro de 2018, Sérgio Vieira não hesita. No bloco de notas está assinalado o nome de Matheus Reis, apontado desde os tempos em que o treinador português trabalha no Brasil – São Bernardo, América Mineiro, Ferroviária e Atlético Paranaense.
«Fui eu que o trouxe para Portugal, sim. Vi alguns jogos dele no São Paulo – já na Serie A – e fui acompanhando a evolução do Matheus. Informei-me sobre a personalidade dele, juntei as peças e tive a certeza que viria a ser um jogador de nível muito alto», sublinha ao zerozero.
«Em janeiro de 2018 precisávamos de um lateral esquerdo no Moreirense. Só tínhamos o Rúben Lima, porque o Bruno Silva estava com uma lesão prolongada, e eu indiquei o nome do Matheus.»
Sem espaço nesse São Paulo, Matheus troca o colosso de São Paulo pela familiaridade de Moreira de Cónegos. Sérgio Vieira dá-lhe conforto, amparo, mas poucos minutos.
«O potencial estava todo lá: físico, mental e técnico. Trouxemo-lo para ele se adaptar, amadurecer. Jogou pouco porque o Rúben Lima era um relógio suíço. Fez duas grandes épocas no Moreirense e o espaço na posição era dele, por justiça», justifica o treinador de 39 anos.
Matheus ganha cabedal, treina muito, aparece na parte final de dois jogos no lado esquerdo do ataque e… volta ao Brasil. Mas por pouco tempo.
«Não consegui ajudá-lo ao entregar-lhe a titularidade no Moreirense, mas ajudei-o ao indicá-lo ao Miguel Cardoso e ao Miguel Ribeiro, para o Rio Ave. Eu trabalhei com o Miguel, ele perguntou-me se havia algum lateral esquerdo com potencial para ser titular no Rio Ave e eu indiquei-lhe o Matheus.»
Matheus não joga com Sérgio no Moreirense e Sérgio aconselha-o ao Rio Ave. Incoerência? Nem por sombras.
«O Miguel Cardoso perguntou-me a mesma coisa. ‘Então ele não jogava contigo e achas que ele vai jogar aqui?’ Eu dei-lhe a explicação que vos estou a dar. A concorrência do Rúben Lima não lhe deu hipóteses. E assim foi. O Rio Ave contratou-o e o Matheus deu-me toda a razão.»
Quatro anos volvidos, Matheus é indiscutível no Sporting. Sérgio Vieira exclui a parte da «falsa humildade» e jura não estar «minimamente surpreendido».
«Afirmo-o honestamente. O Matheus, o empresário dele e as pessoas do Moreirense sabem o que lhes disse em 2018. O Moreirense entendeu não apostar nele. No caso do Matheus, eu tinha a convicção de que ele ia chegar ao topo. Tinha a certeza. Era uma questão de tempo, porque estava lá tudo.»
«Muito educado» e «muito concentrado nas tarefas diárias», Matheus é dos «poucos casos» em que o potencial se transforma em qualidade. A expressão é de Sérgio Vieira.
«Há jogadores que são incapazes de completar esse processo. Fez grandes épocas no Rio Ave e agora aí está, é claramente um dos melhores jogadores da Liga. Tem um rendimento estável e de enorme qualidade.»
Últimos capítulos. A cena repete-se em São João da Boavista. A dona Luciana abre o jornal e chama o senhor Paulo Sérgio.
– Paulo, olha o nosso menino Matheus AQUI! Liga para ele, liga para ele!
NOTA: os pais de Matheus Reis, apesar de toda a amabilidade nas conversas em off, das quais saíram alguns pormenores narrados, declinaram o convite do zerozero para participar nesta reportagem.